segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O meu companheiro de viagem - desde há 18 anos

fonte: http://www.shutterstock.com/

há um dia do ano em que durmo muito mal, mesmo que tente dormir como deve ser. e como não tomo comprimidos para dormir, lá tem que ser. a memória tece-as e é implacável. nunca me lembro mas ela ajuda-me. é quase sempre na noite de 21 para 22 de fevereiro. este ano quase coincidiu dia-a-dia na semana. em 1991, dia 21 foi numa 5ª feira. e na passada 5ª feira, não era dia 21, mas fez exactamente 18 anos. não dormi.

conheci nesse dia o meu companheiro de viagem, que este ano atingiu (atingiria ???) a maioridade. foi tudo muito rápido, nem tivemos tempo para as angústias naturais na maturação das relações. foi descoberto (deu-se a descobrir) na parte da tarde de 5ª feira, na manhã seguinte quiseram levá-lo. ainda hoje não sabemos se está escondido (afinal nasceu como parte de mim, e nunca deixará de fazer parte de mim) ou se foi efectivamente aniquilado. é uma dúvida que nos acompanhará, estou certo, para sempre. mas é um bom companheiro. não tem dado trabalho. escondido ou não, raspagem completa ou não, está sossegadito e não causa distúrbios nem produz ruído desnecessário.
desta relação ficaram (permanecem ? …) muitas histórias e estórias. 18 anos é muito tempo. acresce o tempo em que se insinuou na nossa relação, sem que ninguém o soubesse – eu sentia-o, mas nem desconfiava. adaptei-me, durante meses, sentia-o, fazia uma pressão enorme para estarmos juntos, era teimoso. a dor era a minha reacção à sua iniciativa e persistência. e doía muito. mas nós humanos, adaptamo-nos a tudo. literalmente!

bom, tive muita sorte. o meu companheiro foi descoberto, analisado, retirado (?), estudado, na hora certa e no momento certo. com 21 anos (a idade dele ninguém a sabia ao certo, seriam também 21 ou menos, ou muito menos, …). estava alojado no cerebelo, e chamaram-lhe astrocitoma. disseram-me que era benigno (sim, acredito, pois caso não fosse, e com 21 anos, com

a rebeldia a correr no rio da juventude celular, não estaria a escrever estas linhas, não estaria cá para contar e para correr 40 km no dia dos meus 40 anos, daqui a uns dias).
ninguém até hoje lhe descobriu a origem – congénito é a palavra com que lhe rotularam a origem, o mesmo que hoje em dia nos dizem sobre as viroses das nossas crianças, quando ninguém sabe o que têm e dizem para esperar 72 horas :)

comprimia ferozmente o nervo óptico – coitado, estava preso, queria crescer e eu não o deixava. repito, afinal era uma parte de mim. talvez uma ovelhita negra, mas não deixava (não deixa ?) de ser parte de mim. até à cegueira passariam algumas horas, por “corte” no nervo óptico. a lesão seria definitiva. até ao coma, mais umas quantas – afinal aqui na caixa negra, as medidas não esticam, qualquer moço ou moça que se queira espreguiçar perturba a harmonia do resto do pessoal.

na altura não havia euromilhões, mas o meu jackpot saiu nesse dia. tive igualmente muita sorte por ter percebido a vida com 21 anos. há quem perceba antes, há quem a entenda pela mesma altura, outros depois, há quem nunca a entenda. eu lá estava e espero ter sabido receber essa dádiva da vida de braços abertos. espero, aliás, ser dela merecedor.

das muitas histórias e pensamentos alguns ficaram como mais marcantes:
- não trocaria o hospital de santa maria por nenhum outro (é verdade que para a situação em causa não conheci mais nenhum. o que quero dizer é que no meu caso, serviço público foi igual a competência). todo o pessoal, apesar de instalações deficitárias (desejo que tenham melhorado desde essa altura), foi extraordinário. apesar dos muitos conselhos, sempre resisti a ir ao estrangeiro recolher novas opiniões. os melhores estavam ali (fica o devido e imortal agradecimento ao professor antónio trindade, à sua equipa, às equipas de enfermeiros, a todo o pessoal auxiliar, administrativo, …, e ao dr. ruy macedo, ainda hoje o meu oftalmologista, e que sabiamente me descobriu o mano rebelde na tarde dessa 5ª feira, tendo-me “ordenado” de imediato que fosse para santa maria – a ele o devo, o início da stressante aventura, bonita e bem sucedida com o ducurso dos dias seguintes);

- o melhor duche que tomei na vida foi nas instalações adaptadas para quem sofria de paraplegia. degradadas o quanto baste, fizeram-me chorar de alegria, no 5º dia após a cirurgia, pois o regresso à normalidade faz-se sempre pelas pequenas e mais básicas rotinas do quotidiano – um duche, por exemplo;

- com a cabeça aberta pelo serrote ou pelo berbequim em toda a zona occipital (nestes 18 anos o desenvolvimento científico atenuou, certamente, os meios intrusivos :), desde a parte de trás do pescoço até ao cimo da cabeça (tenho um cicatriz linda, bem direita, da qual me orgulho muito, uma verdadeira obra de arte), era apenas o “doente” mais saudável da enfermaria do piso 7, da neurocirurgia;

- tudo muda e quando muda o essencial, é muito rapidamente. as mudanças que contam acontecem num espaço muito curto de tempo. por isso devemos estar atentos a todas as oportunidades, que podem surgir ao virar do nada;

- assim que saí do hospital, após uma curta estadia de uma semana (como disse sou um felizardo) procurei desde logo a piscina. não foi por acaso que o instinto de sobrevivência me ditou que teria de estar em movimento. uns dias depois regressei à vida normal, graças à confiança que os meus pais em mim depositaram. foi a decisão certa.

- sempre me disseram que teria que voltar a ser operado, pois todos os indicadores apontavam nesse sentido. preparei-me durante 6 meses para uma batalha que nunca aconteceu. afinal havia (subsistem) dúvidas. senti-me defraudado; quem se prepara para a luta quer batalhar. mas com o tempo tudo se resolve. a serenidade volta sempre.

- o bom humor foi e é fundamental. mesmo nos momentos menos bons: mesmo quando não se sabe o que se deve dizer a uma mãe, à nossa frente, e é preciso contar que temos um tumor na cabeça, é importante pedir para desmarcar a consulta na dentista no dia seguinte, como aconteceu :). ou pensar durante a noite, de forma positiva, que aconteça o que acontecer, se vai sobreviver e pode acontecer ter que aprender braille – como também pensei. que haja algo de terreno, de bem humorado e de concreta resolução nos momentos que envolvem a angústia.

- quando me cruzo com algum pessoa que perdeu a visão nunca deixo de sentir a sorte que tive. geralmente é na forma de arrepio que me percorre todo. é talvez a minha forma de admirar quem vive nessas circunstâncias e de agradecer tudo o que me sucedeu.

- ao entrar numa aventura destas é forçoso confiar nas equipas médicas. é como entrar num avião. o controlo tem que ser partilhado e há que confiar em quem toma o comando. depois, há uma fase em que volta a ser nosso e depende da nossa vontade. apenas. e aí temos tudo a dizer e a fazer. a acção só depende de nós. de cada um.

- o resto, bom há tantas estórias para contar, que terá que ser noutra altura.

desculpem o desabafo, foi longo, mas era preciso.
este é um ano de festa, 40 anos é uma idade dourada, tento que cada dia da minha vida seja de festa, seja sempre o mais pleno, e estas reflexões ajudam a centrar no que é verdadeiramente importante.

quem chegou ao fim deste post apanhou com uma estrondosa seca.
o que posso dizer? olhem: azar companheiros! também faz parte levar umas "estuchas" de vez em quando – caso não seja sempre … eheheh!

isto tem que se levar devagar; agora já percebem um pouco melhor porque tento viver cada dia de forma mais sábia, como a tartaruga e porque gosto de correr muito tempo e muito devagar.
é que isto por cá só vale a pena quando se aprecia. e depressa é mais difícil apreciar.
o resto … o resto é paisagem e vai embora muito depressa, nem damos por nada.
portanto: siga!
cada minuto é, sempre, definitiva e incondicionalmente, o mais importante.
ab

14 comentários:

José Alberto disse...

Caro António,

São estas e outras experiências que nos tornam mais humanos e nos ajudam a dar mais valor à vida e às pequenas (muitas) coisas que a compôem.

Foi um marco, que se tornou marca e que vai marcar o resto da sua vida. Concerteza esta experiência o tornou um homem muito maior.

Abraço

José Alberto

Maria Sem Frio Nem Casa disse...

António

Li tudo. Cheguei ao fim sem dificuldade. Pelo contrário, a atenção era reforçada palavra a palavra, com o medo de vir a ler o que não queria.

Um grande beijinho António e ... e... agora percebo como me conseguiste acompanhar ("...porque gosto de correr muito tempo e muito devagar...")

Muitos anos de vida Amigo!

Ana Pereira

Fernando P disse...

Um texto que causa calafrios, talvez porque esse é um medo não confessado de muitos e também porque todos infelizmente conhecemos um amigo ou um familiar com um companheiro mais apegado, que não aceitou a separação.

Parabéns pelos 40 e goze muitos, bons e vagarosos. Embora eu até seja mais de velocidades... Depressa até se vê melhor :-)
Um grande abraço,
Fernando

João Paixão disse...

Assim é que é, devagar para usufruir.
Muita força. Todos devemos aprender com os outros, o senhor mostra-nos a sorte da dádiva que é viver. Todos temos de saber lidar com isso. Grande abraço e durma bem

Anónimo disse...

"quem chegou ao fim deste post apanhou com uma estrondosa seca."
Li porque quis e gostei do que li.

Parabéns pelos 22+18 anos!
João

Luis Correia disse...

leio,

leio com serenidade e com respeito.

leio porque sei que o meu colega e amigo já teve que enfrentar monstros muito maiores do que os de agora.

leio,

e releio com gosto e admiração.

são pessoas como tu que nos fazem não desesperar com o presente, e pensar apenas no futuro.

leio com prazer.

um abraço!

Anónimo disse...

António
és um vencedor!
Sem mais palavras.
Forte abraço,
António e Isabel

Nuno disse...

Olá Antonio!
Historia incrivel que saiu vencedor, de uma grande maratona, a da saude.
Tudo de bom
Grande Abraço
Nuno Romão

Fernando Andrade. disse...

Olá António
Foi uma história que, ao invés de "ser uma seca" foi empolgante. Vivida intensamente e, talvez por isso, tão bem contada, como já nos habituou.
Fico feliz pelo desfecho e fiquei a apreciar melhor a sua forma de encarar a vida.
Grande abraço.


FA

Nuno Cabeça disse...

Também cheguei ao fim,
Li devagar uma história de vida
Gostei e pensei.
Abraço!

Anónimo disse...

Querido Amigo ... estas lágrimas que me fizeste conter, fazem-me recordar momentos semelhantes por circunstâncias distintas. Contigo foram à 18, comigo à 19. O que tu me fizeste lembrar. Foram tempos de angústia, de dor ... e talvez por isso hoje sinto e vivo a vida como quero. Seja ela vivida de forma infantil, imatura ou mesmo despreocupada. Não me interessa. Apenas quero ser feliz ... dentro de mim próprio. Ufa, que este desabafo custou-me um pouco.
Aquele abraço.
NF

Anónimo disse...

Grande post primo... FORÇA
grande abraço
Luís Maco

Pedro Alves disse...

Olá,

Li este teu post no dia que o colocaste e pensei... radical, fiquei sem saber muito bem o que comentar.
Um dia está tudo na maior e no outro na pior.
Sustos como esse nunca tive... não tão prolongados e angustiantes.
Mas eu acredito piamente que ver a vida por um fio transforma-nos numa pessoa melhor...Cá está a prova!

Eu, Corredor disse...

Olá Antonio,
li com toda a atenção e até ao fim.
E admiro-te ainda mais como ser humano. Estás de parabens, pois é raro encontrar alguem com a tua força interior a tua maneira de ser e estar na vida.
Fizeste-me pensar muito a sério nas nossas prioridades de vida

aquele abraço
Nuno