sábado, 15 de novembro de 2014

Um passeio de sonho - Douro Vinhateiro 200 km

Nota: Todos os créditos fotográficos para Pedro Alves@Randonneurs Portugal.



Mais de um mês depois é a altura para relatar o que foi a extraordinária experiência do brevet de 200 km do Douro Vinhateiro. As palavras certamente não traduzirão a maravilha que nos foi dada a ver e a sentir, bem como a dimensão da beleza e do encanto deste pedaço de património da humanidade.

Chegados de véspera e instalados no glamouroso edifício do Inatel de Entre-os Rios, a manhã começa com a Rita semi acordada, entre o ensonado e o radiante por dormir num hotel, a dizer que queria morar ali, e a confirmação de que a checklist estava toda picada.
Seis horas da manhã, toca a levantar, despachar, confirmar tudo e seguir para o pequeno almoço que simpática e excecionalmente nos foi permitido tomar a partir das 06:30h. os rapazes repousavam em quarto próprio e já não os vi de manhã.
Teriam um dia de passeio pelo Douro, de carro, barco e comboio histórico.
No pequeno almoço o José e o Manuel, equipa organizadora, geriam os acontecimentos e também se preparavam para pedalar todo o percurso com os participantes.
Logo de seguida o Carlos e o Pedro. Iriamos partir os 3 juntos e logo se veria o que dava o dia. Uma espécie de ferrari com um paris-brest-paris no curriculum, um ford focus a fazer a rodagem e um Chevrolet de há 20 anos, bastante fora de moda e olhado de lado, já com umas subidas no lombo. Interessante, no mínimo.

Sem grande margem para nada que não fosse apanhar a bicicleta na arrecadação do hotel, verificar e mochila, fazer o bike check e ainda ter que mudar a pilha à luz traseira, pelas 7 da manhã lá nos fizemos à estrada. Saídos à esquerda do parque do Inatel começamos logo a descer e a sentir o frio da manhã. Decidira sair de calções, crente de que o dia estaria quente, mas ainda duvidei da bondade dessa decisão.
Percebi também que me esquecera de impermeável. Caso o tempo mudasse estaria em apuros.

Chegados lá abaixo a Entre-os Rios passamos a ponte sobre o Tâmega e somos brindados com uma primeira visão magnifica, o dia ainda a acordar, meio noite, meio dia e o rio sereno, uma tranquilidade à prova de tudo.

Era a hora da primeira subida que teria uns quilómetros e seguimos passando por terras como Várzea do Douro, Alpendurada, Granja, Aldeia Nova (a remeter-me para as raízes da outra Aldeia Nova alentejana), São Lourenço do Douro, para começar.
A vista era demolidora, com o sol a nascer e a banhar o Douro com a primeira luz da manhã. A vista era inenarrável, olhando à direita e para baixo, as encostas rendiam-se ao rio, em absoluta comunhão com todos os elementos, num amanhecer inesquecível.
Após mais um conjunto e uma dúzia de terras e lugares, descemos para a Pala, num trajeto para dar descanso às pernas e desfrutar de um momento antes de uma nova subida, bem mais dura

Gosto de subir de bicicleta. É um desafio único, não tanto para subir depressa, mas para sentir toda a energia necessária e toda a energia cinética que conseguimos gerar para produzir um resultado, subir solidamente, subir com potência, ter o controlo do que naturalmente é duro e difícil. É sempre uma experiência única, pois está garantido um resultado positivo, seguindo mais ou menos devagar. A biomecânica ao serviço de quem pedala vê-se e sente-se melhor nas subidas.

Passada a primeira subida ou conjunto de subidas com cerca de 8 quilómetros, iniciámos o segundo conjunto, que teriam cerca de 10/12 quilómetros e passaria numa zona mais acima das encostas e que proporciona uma vista diferente, não de rio, mas das encostas mais interiores, socalcadas com vinha. Verdes, lindas.

Entre as muitas terras por onde passámos sobressaiu-me Gaia, não a outra mas esta mais pequena, Valongo, Ervedal (também esta a lembrar-me as raízes alentejanas de Ervidel). Aqui, já de novo com o rio na mira, rapidamente chegámos a Frende, o primeiro posto de controlo, cerca dos 50 e poucos quilómetros. Numa bomba de gasolina carimbámos a passagem, comemos e rapidamente seguimos viagem pois as subidas não deram margem para grandes paragens. Com meia hora de avanço face ao fecho do posto de controlo, teríamos que recuperar andamento para almoçar com calma.

A partir de Frende e com destino à Régua o trajeto é a descer e bastante agradável para desfrutar do rio lá em baixo. Já em plano e paralelamente à linha do comboio, lado a lado com o rio, passamos por Bebereira, Granjão, Caldas de Moledo, entre outras, podemos observar a sua constituição, a sua força, imaginar toda a vida que vive por debaixo da superfície. E sentir que qualquer tentativa para forçar ou domesticar uma força destas será algum dia inútil. A rebeldia vive nos redemoinhos, nas correntes, nos nós e na malha de forças que ora conflitua, ora colabora, nessa massa invisível que faz mover tudo.

Na Régua uma passagem rápida, muitos turistas e muitos barcos, muitos carros também a fazer-nos apressar a passagem para voltar a respirar mais puro. Era o tempo de passar mais uma ponte, atravessar o Douro e seguir para Pinhão, vinte e poucos quilómetros em plano com pequenas oscilações, lado a lado com o rio, agora na margem esquerda e com as grandes quintas produtoras e as vinhas como companhia. A cor predominante era o verde amarelado, o cheiro era o típico dos locais onde se vindima e produz o melhor sabor dos deuses. A história do vinho do porto, dos vinhos do Douro, a história e cultura de uma região iam-nos passando ao longo do passeio, com o nome das quintas em relevo e com elevado tacto para a publicidade e visibilidade. Quinta D. Matilde, Quinta do Pêgo, Quinta de Santa Bárbara, Sandeman, Quinta Rosa dos Vinhos do Porto, entre tantos outros sinais dos tempos, das gerações, da história de Portugal. Um festim para os sentidos e para a memória física.

Perto do Pinhão percebemos que havíamos ganho perto de 1 hora e vinte face ao fecho do posto de controlo. Situado num hotel idílico à beira rio e logo a seguir à ponte, colocava-se a questão de almoço ali ou dar a volta e regressar após os primeiros 100 km. Com algum avanço face ao tempo estimado decidimos seguir e parámos a uns 5 quilómetros para almoço, numa mesa onde se haviam juntado mais três randonneurs (antes, já nos tínhamos cruzado com mais 3 que faziam o trajeto de regresso).
Sopa, sandes de queijo e uma maçã assada deram descanso à gula, permitiram um bom momento de descanso de cerca de 30 minutos e alguns alongamentos, sempre benéficos nas paragens.

Era tempo de seguir. Até à zona da régua teríamos mais uns 20 quilómetros antes de começar a subir para Resende, o próximo posto de controlo, cerca dos 150 quilómetros. O trajeto novamente em plano ia-se fazendo na companhia do douro e dos barcos turísticos que navegavam Douro acima, na sua maioria bastante vazios.
Passada a Régua era tempo de avançar pela nacional 222 rumo a Cinfães. Faltam cerca de 25 quilómetros, a maior parte dos quais serpenteando pelas encostas da margem esquerda do Douro, e quase sempre a subir. O cenário da manhã repetia-se, quando mais subíamos mais abrangente e deslumbrante era a vista. Lá em baixo muitos cruzeiros iam e vinham do Porto, deslizando pelo manto calmo do rio guardados pela imensas e ingremes encostas e por todo o verde e vinhedo que os escoltam em permanência.
A história deste terceiro troço era a de subida aos subida, curva após curva, com umas descidas de permeio, que davam para descansar mas deixavam o sobreaviso de mais subidas.

Chegados ao terceiro posto de controlo em Resende, com quase duas horas de avanço em relação à hora do fecho deu para comer bem, alongar, conviver. Foi neste posto de controlo que quase todos os randonneurs, com exceção dos 2 mais adiantados, se preparavam em conjunto para o troço final.
Foi curioso ver 11 pessoas com motivações, uns semelhantes, outros diferentes, com bicicletas também diferentes entre os carbonos, titânios, alumínios, aço, estrada, BTT, touring, enfim, para todos os gostos, prestes a avançar para novas subidas, para ingremes descidas, para uma etapa final em busca do motivo de cada uma, da realização, de mais um punhado de horas de plenitude nas suas diferentes e variadas formas.

Saídos em grupo descemos meia dúzia de quilómetros para iniciar mais subidas e o grupo começou a partir. De 11 rapidamente se formou um grupo mais avançado de 5/6 e pequenos grupos de 2. A paisagem continuava deslumbrante e o tempo começava a mudar ligeiramente. Ainda sem chuva mas mais cinzento, a temperatura ia diminuindo e era tempo de acelerar.

As pernas estavam ótimas, a moral em alta, as subidas iam desfiando, uma de cada vez. Liguei as luzes por uma questão de precaução, a estrada era traiçoeira e nestas coisas nunca se sabe se na próxima curva não vem um carro e é sempre melhor estar prevenido.

A certa altura os que conheciam o percurso começam a avisar que estava quase. Eis-nos que chegávamos à ultima grande subida, para Cinfães. Não era tanto a extensão, talvez uns 6 quilómetros. Era a inclinação e o facto de já termos cerca de 170 quilómetros em cima. Lá nos fizemos, um metro de cada vez. Havia quem fosse falando. Eu ia calado, concentrado e sobretudo a tentar gerir a energia. Muito dura, com inclinação crescente. Pela primeira vez no percurso e após tanto pedalanço tive que recorrer à pedaleira pequena à frente, algo muito raro. Havia companheiros que repousavam ao lado das bicicletas. Eu sabia que não podia parar, subir com uma bicicleta de 15 quilos pressupõe ter que manter sempre a geração de energia, manter sempre em movimento, não parar, sob pena de custar mais depois. Fiquei sozinho pois fui avançando e ganhei algum avanço ao grupo em que ia integrado.

Lá segui, tentando contraria a acumulação de lactato, a respiração ofegante e o sentimento de que aquela subida nunca mais acabava … perto de Cinfães, já lá bem em cima a estrada estava em obras sendo necessário redobrar o cuidado. Também decidi não parar. Com tempo de sobra, mas com a noite a cair e os primeiros pingos a ameaçar, preferi jogar pelo seguro. Estava já a relaxar depois da subida, as pernas continuavam em força, mais meia dúzia de quilómetros com mais uma ou outra subida (agora eram todas leves, em comparação com o que já tínhamos passado) e de repente eis-me a descer, rápida, muito rapidamente, numa estrada também em obras, quase a pique em alguns casos. Foram para aí uns 4 quilómetros de loucura a descer, embalado, cabelos ao vento (figura de estilo claro J), em puro gozo, mas também com muito cuidadinho. As primeiras pingas começaram a cair e a estrada iria ficar molhada daí a pouco. Para além disso as descidas eram também em curva e contra curva, apertadas e com trânsito de frente já com anoite a cair.
Rapidamente vejo a placa de Castelo, Castelo de Paiva e passo numa ponte antiga, medieval, sobre o rio Paiva. A vista é linda, ainda consigo ver o rio antes de anoitecer totalmente, mais um cenário magnífico.

O final da aventura está perto. Em Castelo de Paiva brindo-me com uma paragem para meter as 2 últimas bolachas e esvaziar a última garrafa de água. Faltam meia dúzia de quilómetros. As horas indicam-me que estou com uma hora e meia de avanço par ao tempo limite. Faço-me novamente à estrada, calmamente, passo a ponte sobre o rio Douro, agora já muito perto de Entre-os-Rios e subo a última subida até ao Inatel.

Passavam 12h20m desde o início da jornada, uma hora e dez de avanço face ao limite. À chegada o primeiro grupo já estava em amena cavaqueira e foi festejada mais uma chegada. Em amena cavaqueira continuamos à espera dos restantes companheiros de jornada.
A noite terminou co um jantar com as famílias, para comer um excelente bacalhau e desfrutar das histórias do dia e do momento de realização que se sente logo após terminar um evento destes.

Para o ano há mais, certamente, foi um passeio fascinante e muito ficou por ver tal a riqueza da paisagem e do caminho.

Obrigado ao Pedro e Carlos pela companhia mais próxima, ao José e Manuel pela organização e ao restante grupo pela camaradagem.