Mértola –
Vila Real de Santo António = 66,4 km
Total Etapa 5
= 66,4 km
Confiante e renovado fiz-me ao
troço mais difícil. Sabia que teria meia dúzia de senhoras subidas, com
inclinações de respeito e que teria outra meia dúzia, não tão inclinadas mas
com uma grande extensão. Desde logo, e após ter deixado o café onde recuperara
forças, tinha uma subida até ao castelo que não consegui visitar – na próxima J,
seguida de uma descida vertiginosa e radical rumo a uma pequena ponte sobre o sereno
Guadiana. Preparei as mudanças, pois vinha aí a primeira delas.
Durante talvez um quilómetro e
meio foi a subir, a subir, a subir, bem até perto do sol, que a essa hora
queimava mais do que nunca e mais perto do que nunca, a oeste, para onde se ia
pondo. O calor acumulado nos 34 graus ao longo da tarde no asfalto alentejano é
duro. Foi aqui que percebi a boa opção pelo lenço na cabeça, já lá iam perto de
cinco horas. Caso contrário, estaria em apuros, tal era o calor e a bica de
suor que não parava, qual cascata. Cada subida era um desafio e simultaneamente
uma fonte de motivação, pois cada quilómetro passado, cada pedalada a subir,
esperando pela próxima descida, era espaço percorrido, maior proximidade do
final.
A margem face ao plano com que
saíra de Mértola dava esse conforto, de rolar e poder parar mais vezes, beber
água e comer uma bolacha.
Tinha particular cuidado com os
carros que vinham nas costas, sobretudo em curvas mais apertadas e com menor
visibilidade. Não havia muitos, não apanhei nenhum susto, mas a vigília nunca
abrandou nesta fase. Mais uns quilómetros e mais uma descida ingreme, passando
por um parque de lazer e terminando a pique numa ponte, antes da segunda grande
subida. Custou menos, esta segunda, a primeira abordagem tinha corrido bem na
subida anterior e a vontade fez o resto.
Determinado a não ceder, lá andei
e parecia que ia custando menos à medida que subia. Por norma utilizo mudanças
médias nas subidas, nunca vou leve de mais e assim tinha esse barómetro,
consegui sempre manter uma boa relação nas pedaleiras, sem gastar cartucho. Lá
em baixo continuava o Guadiana muito sereno, intocável, crente de que o fio de
ribeiro que ia passando no verão se tornará um leito poderoso no inverno, tal o
declive e a estrutura do vale. Apetecia descer lá abaixo e dar um mergulho para
refrescar, mas a noite havia de chegar e queria entrar em terreno teoricamente
mais seguro quando estivesse escuro.
Consegui manter, com algum
esforço, um plano de paragens de vinte em vinte minutos para beber água e
descansar dois minutos que fosse, pois as subidas iam deixando marca e o calor,
apesar do adiantado da hora, era muito e desgastante. Não ainda havia sinais da
noite e o sol galgava o seu caminho para repousar mesmo ali ao lado da minha
cara. Continuava a suar em bica no final de cada subida, grande ou pequena.
Dez ou quinze quilómetros após
Mértola parei num café de beira da estrada que sabia ser o último antes de
Odeleite. A dona recolhia a placa na rua com a ementa e ia fechar. Perguntei se
ainda me vendia duas águas geladas. Que sim, que entrasse. Perguntou-me de onde
vinha e respondi … de Lisboa. A sua cara e surpresa foi um momento hilário,
perguntando-me se vinha de Lisboa montado “nisto”. “Isto” era o meu trunfo para
chegar ao Algarve, a minha mais que tudo naquele momento, o meu foguetão.
Rindo-me responde que sim, que havia saído de madrugada e que ali estava.
Numa mesa três alentejanos bebiam
cerveja e, devidamente alertados pela dona do café, logo teceram comentários
sobre a aventura. O pessimista disparou logo que não chegaria antes de amanhã
ao Algarve, que ainda havia muito. O neutro, mais factual, perguntou-me a que
horas pensava chegar. O otimista brindou-me com uma tirada e um sorriso franco,
que a seguir daí a cinco quilómetros havia uma descida imensa, logo a seguir à
subida daí a pouco J, e que até Vila Real era sempre a descer. Brinquei um
pouco, disse-lhes que chegaria ainda hoje e que sim, que o percurso seria
melhor a partir de agora e com duas águas bem geladas fiz-me à estrada.
O sol agora já estava a
desaparecer, a solidão voltava, não havia casas, não havia gente e de repente,
depois da anunciada descida, dei por mim a entrar no IC 27. Bermas! Maior
proximidade. Ao lado direito corria a estrada antiga, também ela abandonada,
envelhecida, discreta mas mantendo o seu orgulho de quem foi uma via de total
importância em tempos mais idos. O mesmo, praticamente, que no trajeto entre
Beja e Mértola. Estaria a cerca de 30 e poucos quilómetros de Vila Real de
Santo António. Mais ânimo. A noite caía definitivamente. A vigília continuava
em alta, pois os carros vinham em grande velocidade. Apesar de bem iluminado,
luz traseira, refletor no tornozelo esquerdo, colete refletor, luz dianteira, o
cuidado nunca era demais. Alguns carros buzinavam para animar, outros buzinavam
e ouvia-se umas bocas e risos, talvez a escarnecer, outros passavam tão rápido
que só ficava o vento deixado à passagem.
Um sinal para acautelar ainda
mais a viagem era a oscilação da bicicleta nas subidas quando me colocava em pé
para ajudar ao arranque. Sinal de cansaço e efeito da noite e da menor
visibilidade, que isto de pedalar para longe e de noite há quase 16 horas tem o
seu impacto.
Para focalizar no que faltava,
tinha um objetivo mais imediato, chegar à barragem de Odeleite para parar,
comer, alongar um pouco. Seria a última paragem antes de Castro Marim e Vila Real.
Faltavam nessa altura cerca de 20 quilómetros para chegar. Era noite cerrada. Comecei
a ver água, à direita, já a barragem se anunciava no meio do escuro. A descida
para Odeleite permitiu descansar um pouco. É que das seis subidas “fatais” as
quatro últimas eram já em plano IC27. Não sendo subidas ingremes como na serra,
após Mértola, eram bastante longas, sinuosas, e após duzentos e muitos
quilómetros iam deixando marca. Uma mensagem do Pedro teve um efeito altamente
motivacional. “A noite é amiga do Randonneur, pedalar a subir, descansar a
descer”.
Em Odeleite na penúltima paragem,
seria também a penúltima “refeição”. Uma sandes que vinha desde Lisboa e que se
aguentou no caminho, uma garrafa de água ainda fresca e um ambiente indescritível,
deram para relaxar e ganhar energia para o resto da aventura. A massa de água
parada, prisioneira do Homem, impressionava, com a noite escura e com a lua a
alumiar tenuemente toda a extensão da barragem. A bem do animal humano, aquela
imensidão de água parada é o reflexo da subserviência totalmente ilusória, até
um dia em que a rebeldia desta natureza escrava traga novamente ao de cima o
selvagem curso dos rios, para a qual não existirá mão Humana suficiente para a
enfrentar.
O silêncio era absoluto, um autêntico
retiro, um inimaginável paraíso.
Pequeno, senti-me muito pequeno naquele
momento, mas mais livre do que nunca, em total harmonia e serenidade com a envolvente.
Logo com uma subida no regresso à
estrada, a novidade foi a luz dianteira (já com umas doze horas de tempo de
vida em cima das pilhas) que acendeu o vermelho. Tinha pilhas suplentes. Decidi
esperar mais um pouco, a luz duraria mais 20 ou 30 minutos, e mais à frente
encontrei bastante luz, num nó de entrada e saída do IC. Para além de
iluminado, sempre estaria em maior segurança a mudar as pilhas. Nesse momento
uma mensagem do Nuno a perguntar onde ia. A caminho de Castro Marim, mas coisa
menos coisa, meia hora para chegar. Logo de seguia outra mensagem a dar força,
do Luís. A tanta distância havia gente que seguia os meus passos, havia Amigos que
davam ânimo, havia ouvidos e vozes. A corrente que ajuda a renovar as forças.
Com as luzes mudadas, nova onda
de energia, um sentimento de maior segurança naturalmente, com o caminho bem
visível, e de repente … começo a descer, a ver as luzes cada vez mais e numa
maior extensão e percebo que era Vila Real. Castro Marim estava logo ao virar
da esquina. Começava uma nova frente na viagem, a saída do IC27 e de uma estrada
bem tratada, para as estradas mais esburacadas e menos arranjadas, logo mais
perigosas. Com o castelo de Castro Marim à vista e gente nas esplanadas a
desfrutar do calor, apanho um ciclista à frente, a pedalar devagar no mesmo
sentido que eu, sem capacete, com iluminação muito deficitária. Cumprimentei-o
e deve ter achado que tinha passado o carrossel iluminado da feira de Castro
Verde J.
Segurança antes de tudo.
Chegado a Vila Real, na rotunda
da entrada e saída da cidade era tempo da última paragem. Tinha duas bolachas
com passas e iogurte, que o estomago agradeceu, mandei mais uma água abaixo e …
faltavam dezoito quilómetros. Um mega cartaz à minha frente anunciava uma
hamburgueria aberta até às duas da manhã. Tentador. Mas queria chegar rápido. Teria
certamente alguma coisinha para comer à minha espera. Nada de distrações. Foi altura
de deitar fora o lixo que vinha acumulando, garrafas vazias, pacotes de
bolachas, as folhas onde conservara as sandes. Tinha ganho novamente algum
tempo. a previsão de saída de Vila Real era à meia noite e meia. Havia chegado
pelas 22h31m. Descansei durante cerca de 25 minutos e arranquei com uma hora e quarenta
de avanço face ao plano.
Decidi seguir pela ciclo via, à
cautela, de frente para o trânsito, que existe até pouco antes de Praia Verde/Altura.
Conhecendo muito bem a EN125, numa 6ªf de noite, não quis arriscar. A ciclo via
é demolidora, está mal concebida, em cada casa com entrada e saída de viaturas
tem um desnível que mais parece um enorme buraco, mas ainda assim não tem
carros!
Era tempo de redobrar o cuidado. Depois
de tanto quilómetro não queria ficar pendurado, nem por furos, nem por alguma
distração. A hora era para acabar em beleza.
Próximo destino, final: Cabanas
de Tavira. Arranquei muito satisfeito, realizado e motivado, pelas 22h55m.
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