sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Etapa 3: Canal Caveira - Beja

Canal Caveira – Beja = 61,2 km

Total Etapa 3 = 61,2 km

Saído do Canal Caveira com duas horas de avanço face ao plano era altura de começar a gerir o esforço e sobretudo o calor. O tempo estava ainda nublado mas a frescura da manhã ia-se dissipando. Como dica do maior guru, pela hora do almoço, tinha nunca esquecer os líquidos e pirar-me dali o mais rápido possível, pois era raro o sol estar a descansar até Beja, por estas horas.

Lancei-me em direção ao IP 8, rumo a Beja e nem de propósito, na curva que lhe dava acesso eis que rompe o brilho. Estavam lançados os dados para os próximos sessenta quilómetros, calor em crescendo e sol a bater bem lá do alto.

Pelas estradas tão conhecidas do “Alentejo” que percorria em pequeno quando ia para casa dos meus avós em Avis/Cabeção (a diferença entre alto e baixo Alentejo a nível do asfalto e do arvoredo não é muito nítida para um inculto como eu na matéria) ia seguindo ao sabor da onda de sobe e desce. Ao vivo, estava ali a diferença entre a expressão planície alentejana e a prática, quilómetro após quilómetro.

Mais uma vez não tinha muita noção do ritmo a que ia, mas percebia que estava a manter alguma cadência, cautelosa, dado que a temperatura começava a subir. Haviam previsto 34 graus para a zona de Beja e Mértola e era essa a baliza. Todo o cuidado era pouco no sentido de não acelerar muito, não esticar e ingerir líquidos de forma frequente.

Tendo saído do Canal Caveira pelas 11h58m, uma hora depois estava a dar notícias à família, a ouvir as vozes que me animavam e ia aproveitando para ingerir líquidos. Em Santa Margarida do Sado passa-se a ponte e apetece um mergulho, um pouco a norte um viaduto inacabado de uma futura (?) via rápida ou alternativa ao IP8 e continuava o sobe e desce ondulado pelo Alentejo, sereno, imponente, imortal, uma força natural que não se conta, que vive no sangue alentejano e na dureza das estações que aí embatem.

A caminho de Beja continuava a apertar o calor e eis que entre a fábrica do azeite “Oliveira da Serra” e Ferreira do Alentejo tomei uma decisão importante que me valeu certamente uma boa parte do bem-estar até ao final. Por baixo do capacete coloquei na cabeça o pano comprido branco, tipo legionário no deserto, para proteger do calor, a cabeça e o pescoço. Passado o habitual desconforto inicial, eis-me melhor protegido e mais descansado quanto aos efeitos do sol de chapa na careca.

Iam passando carros, camiões e tratores, uns apitavam incentivando, outros apitavam e gritavam de forma jocosa, outros ainda passavam mais ou menos depressa em total silêncio, uma rajada de vento breve e rapidamente passageira. Dois deles haviam de ser ultrapassados por mim já depois de Ferreira do Alentejo, um deles por ter sido mandado parar pela GNR Brigada de Trânsito, o outro com o capôt ao alto, a arejar, pois que havia tombado no quente asfalto.

A bicicleta continuava em pleno, o corpo ia dando bons sinais, sentia-me bem e de repente começo a ver as placas a anunciar Beja cada vez mais perto. Era uma motivação extra, estava a chegar a meio da jornada, a cerca de 20 quilómetros de Beja, psicologicamente foi um momento excelente, pois não tendo o corpo sinais de cansaço por aí além, era um bom tónico olhar para os quilómetros que iam ficando para trás, como parte do objetivo maior. O foco era ai, no que já tinha pedalado, no facto de, nem nas pernas, nem ao nível do assento estar a sentir dores relevantes, nem, ainda, no facto de o calor estar a dar cabo de mim.

Muitos pensamentos, muita reflexão, muitas caras, imagens e situações vieram visitar-me durante estas perto de três horas alentejanas de passeio ao sol. Os retiros no local certo têm disto, conseguimos ir esvaziando a mente, relaxando, ainda mais quando estamos no meio de uma árdua tarefa e de um objetivo ainda distante, mas para o qual já demos bastante e não há volta atrás.

Com as placas a indicarem o aeroporto de Beja e o sentido de Beja, estava quase radiante por ter chegado ao final desta etapa. Ainda tive tempo para passar em Beringel e relembrar uma sopa de cação que de tão fenomenal, há talvez uns dezoito anos, nunca a esqueci. Antes havia passado na tão famosa estalagem das Picanheiras, um local idílico para alguns colegas de trabalho, J, há muitos, muitos anos. Tal como quase tudo no Alentejo, também as Picanheiras resistem ao tempo e à espécie humana.

Já com Beja à vista é tempo para uma paragem estratégica, mais motivacional que outra coisa, sob a sombra de uma oliveira para fechar um powerade e para alongar um pouco. Logo depois a última bomba de gasolina antes de Beja, a rotunda de entrada na cidade e ali estava o LIDL, local escolhido para a paragem.

O ritmo tinha decrescido um pouco, mas eram 15h00m e continuava com um avanço de duas horas e meia face à hora prevista de saída de Beja. Calmamente procurei uma sombra, um local onde pudesse deixar a bicicleta segura com cadeado enquanto procurava um café no próprio LIDL. Foi também o tempo para avisar os ouvintes e seguidores mais diretos da aventura de onde estava e como me sentia.
Tudo estava a correr tão bem que não queria entrar na ilusão da facilidade, até porque o mais difícil ainda estava por vir. Aproveitei para alongar pernas e tronco e desfrutar das sombras.

Entrei no LIDL e recebo uma brisa fresca, reconfortante e que me permitiu durante uns minutos refrescar o corpo e sobretudo o ânimo. Não me havia lembrado que na filosofia alemã e utilitarista esta grande superfície existe para chegar, escolher os produtos entre filas extensas e paralelas, ir para a caixa, pagar e até à próxima. Nada de superficialidades como um espaço para tomar café ou sentar um pouco. Tudo muito “clean”. Saí, decidi não renovar os powerade e passar a beber apenas água e depois de levantar dinheiro na máquina ATM dirigi-me então a um café no espaço contíguo ao LIDL, um talho de grandes dimensões e aparentemente, volume de negócios, chamado tão a propósito “Matadouro”, em cujas instalações havia um pequeno café.

Era o tempo de sentar um pouco, comprar águas geladas para levar e comer e beber. Ainda tinha sandes (apenas havia comido uma no ferry de Troia) e meti uma boa sandes, o resto do terceiro powerade e uma barra (bolacha com iogurte e passas). Renovado o estomago, arranquei rumo a Mértola.

Tinha demorado três horas de dois minutos a percorrer os 61,2 quilómetros até Beja. Sem monitorização com conta-quilómetros e ritmo, tinha corrido muito bem, um ritmo adequado ao calor, ao trajeto de falsa planície, à gestão do que faltava ainda percorrer. Entrava agora numa fase crítica, onde seria vital gerir o esforço durante o calor e na “descida” até Mértola para aguentar sem sobressaltos os últimos noventa quilómetros.


Pleno de confiança, motivação e regenerado, fiz-me à estrada. Saí pelas 15h41m, com cerca de uma hora e quarenta e nove minutos de avanço face ao plano estimado de saída, treze minutos mais tarde do que na saída do Canal Caveira. Não estava nada mal para o primeiro embate com o calor alentejano. Não tinha sido necessário, até ali, acionar o plano B, descanso forçado numa qualquer estalagem ou residencial.

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