quarta-feira, 5 de maio de 2010
Carta Aberta aos meus três Filhos
17-04-2010
05-05-2010
Carta aberta aos meus três filhos
Gosto de escrever a preto meus filhos. Porem, estas palavras, inscrevo-as no papel branco a azul. É que por vezes, talvez muitas vezes, o que importa é escrever. A cor é a da alma, não a da caneta.
Começo por ti Rita.
Chegaste de mansinho em Janeiro deste ano. Foi já depois de o pai se ter deliciado com os trilhos do Crosse Laminha, perto de Aljubarrota e com os 17 km entre Sintra e o Cabo da Roca. Talvez tenham ajudado os ventos desse majestoso atlântico, ou o ar rebelde do ponto mais ocidental da Europa. Quem sabe?
Soubemos-te em Fevereiro. Insisti. Sabia-o de antemão com os primeiros sinais. O teu anúncio não podia ter sido mais inequívoco. Traçaste desde logo a tua presença com riscos a grosso no exame caseiro.
Como o Rodrigo e o André, sempre foste um sonho da mãe. Eu, mais comedido, com os filhos “arrumados” (olha só, imagina, que ilusão!), com a árvore plantada, com o livro escrito, pensava numa hipotética zona de conforto. A razão e a emoção, sempre juntas. Nenhuma ganha, nenhuma perde, quem decide é sempre a vida, sentada na esquina de cada um dos nossos dias. E esta vida, que tem sido tão boa para mim! Continuo a confiar nela. Sem reservas.
Tem-me abalado as zonas de conforto sempre que foi necessário. Tem-me ajudado a crescer. Quero acreditar que a tornar-me numa melhor pessoa, dia após dia. Sim, continuo a acreditar que é apenas isso que levamos no final do caminho, termos sido pessoas com bom carácter, ou não, pessoas de bem, ou não.
Como aprenderás, uma coisa é falar e pensar, outra é sentir. Recebemos-te radiantes. Os manos igualmente. A família rejubilou, como em cada um dos anteriores anúncios, quando os manos e os primos eram anunciados ao mundo.
Como te posso contar? Quebraste-me todas as certezas. E todas as defesas. Partiram-se como cristal largado num penhasco. Cada um de vós meus filhos, provou-me que após cada filho as certezas de um pai diminuem para sempre. À terceira Rita, pude comprová-lo mais uma vez.
Todas as certezas menos uma. A de que a vida é bela porque vocês passaram a existir.
Desde sempre, cedo em cada gravidez, demos o nome a cada um. Assim que se anunciavam decidíamos de imediato. Apenas eu e a Mãe. Foi sempre uma decisão só nossa, os fazedores da obra imaculada; como achamos que deve ser. Serias Rita ou Henrique, nomes já há muito descobertos.
As novidades começaram cedo. Creio ter aprendido há uns tempos que cada filho é diferente, cada um traz novidades, experiências diversas. Cada um coloca-nos à prova de forma diferente, nem mais nem menos intensamente, apenas de forma diferente. Não se pode comparar qualquer uma das experiências com cada filho, apesar da tentação, porque o ponto de partida é sempre distinto com cada um.
E também que o pai sendo o mesmo, é sempre diferente com cada um de vocês e reage de forma diferente com cada um. E que continua a ter medos, após cada um.
Numa das ecografias estavam duas bolsas no útero da mãe. Confesso-te minha filha, fiquei agarrado ao chão. Redireccionar as certezas demora tempo. A dobrar, é mais intenso.
De seguida um pequeno susto. Talvez a preparar-nos para o que se seguiria. A Mãe sangrava. Nunca havia acontecido em nenhuma gravidez anterior. Algo normal, por sinal. E por mais filhos que se criem, existem sempre medos novos, angústias que nunca vivemos antes. A experiência apenas ensina a vivenciar o medo de forma mais pausada, com menos estrondo. Talvez!
Sim, cada um de vocês, cada filho, aumenta-nos o número de “talvez”. Retoca-nos a base de apoio, segundo após segundo.
Passadas essas duas “novidades”, chegámos ao rastreio do primeiro trimestre. Rotina nova. A ciência evolui e com os teus irmãos ainda não fazíamos este rastreio. E a Mãe tem uma idade onde os riscos são maiores. Confiantes de que tudo estava perfeito, seguimos a rotina.
Os ventos desafiantes sopram sempre porque a rotina por vezes se aborrece. É um direito seu.
E chegou um telefonema. As análises haviam revelado um risco. Um risco, estúpida e implacavelmente aumentado. Muito aumentado.
Questões da genética, da vida e da estrutura dos cromossomas. Questões de vida, de qualidade de vida, ou de morte.
Havia uma consulta de alto risco a que devíamos comparecer. Passou a existir, entre o antes do telefonema e o depois desse telefonema, um universo de incerteza e de angústia, que se abriu, numa fenda dolorosa, numa fracção de segundo. Havia tantas, tantas dúvidas. A genética, dona de muito do que somos, a comandar os dias de incerteza.
Ainda nadas no quentinho e tal como os teus irmãos, já nos ensinaste tanto! Olhávamos de lado, com o olhar desconfiado dos pais acossados, o positivo e o negativo. Tentar focalizar no positivo. Mesmo quando não sabemos se é possível. Tentar focalizar no possível, pois tudo o resto parece impossível, tem que parecer impossível. Positivo, sim, afinal torna-se mais fácil, menos penoso, mais suportável. A paciência. A crença. No dia, apenas um de cada vez, ao invés de na noite. Em cada passo, apenas um também, de cada vez. Sempre o dizemos, quase nunca o praticamos. Eu, o teu pai, sempre um aprendiz de pai, com poucas certezas e que ainda assim se pareciam desvanecer. Com o corpo e a alma em ferida aberta. Sobre brasas em vez de chão firme. E ainda não havia nenhuma certeza. Nem do sim, nem do não.
Chorámos juntos, eu e a Mãe. Por amor. Sabes, chorar não tem nada a ver com pensar positivo ou negativo, nem como certezas ou incertezas. Chorar talvez seja uma prova de amor. Chorar por cada um dos filhos, em momentos de alegria ou de angústia, ou de medo, ou de incerteza.
Chorar talvez seja, apenas, uma maneira de, sob a forma de água, afastarmos para longe os maus presságios. Este rio que nos nasce na nascente dos olhos, ou antes, da nascente da alma, e que leva o que não queremos que fique perto de nós. Chorámos por medo. Que mania a nossa, imperfeitos pais, a de antecipar os cenários dantescos. E chorei eu, silenciosamente, com as lágrimas que queimavam cada crença. Sozinho, para não assustar mais a Mãe. É preciso chorar meus filhos. As lágrimas são o fontanário da força para prosseguir.
Recolhemos muita informação. Fomos ajudados, a minimizar a nossa angústia, por profissionais de excelência. O Hospital de Santa Maria sempre foi bom para mim. Reciclou-me a cabeça na luta com, e contra, o tumor. Foi em Santa Maria que nasceram os teus irmãos. E desta vez ajudou-nos a diminuir o medo e a acreditar que as probabilidades e os riscos aumentados são feitos de números importantes – que existem para nos ajudar – mas que a vida real prossegue ao lado e que é a essa, aos factos, que nos devemos agarrar.
Entretanto nadavas e dançavas, parece-nos, que num grande festim!
Há decisões que não é justo colocar nas mãos dos pais. Mas não há outra alternativa. Tem que ser! Só que doem muito. Só de pensar nelas, dilaceram. Em qualquer dos desfechos. Há decisões que nunca são as certas. Esta seria uma delas. Se tivesse que ser tomada. Das que deixam profundas marcas. E ainda bem em que há momentos em que as pessoas são poupadas a ter que optar entre a decisão errada, e a decisão errada.
Estes momentos difíceis aumentam a solidariedade para com todos aqueles que tiveram, têm ou terão, que tomar decisões deste calibre.
Hoje, apesar do meu sentido de voto, quando fomos chamados a pronunciar-nos sobre matérias de vida e morte, nos referendos, sentido de voto que manteria muito conscientemente, sou, creio, mais solidário com quem tenha que tomar decisões extremas, injustas, deste tipo ou doutro, mas que determinem a vida ou a morte.
E chorei minha filha, chorei tanto, por sentir e por antecipar, estupidamente, precipitadamente, que por amor, se pode matar. Paradoxal não é? Não acreditava antes. Agora sei-o! E ainda bem que não tivemos que decidir, porque não sei, digo-o com todo o amor e honestidade, qual seria a decisão. É que nenhuma é justa! Apenas te garanto que seria uma decisão por amor, e com todo o amor, apenas …
Já não sou o mesmo de há umas semanas. Perdi anos de vida, ou ganhei-os, não sei. Quando estive gravemente doente, a ponto de ter sido necessário abrir a cabeça para limpar o negrume lá dentro, nada, em nenhum momento, se comparou a isto. Foi sempre muito mais fácil. Com os filhos e para os filhos, é sempre diferente, muito mais difícil. A medida certa é toda ela muito frágil.
Sangrei, chorei, envergonhei-me de mim próprio, só e pensar em … sou muito imperfeito, meus filhos, mas com isso vivo bem. Não! Não vivo nada bem é sem ti Rita, sem os teus irmãos; quero dar-vos todo o meu amor, ainda que imperfeito.
Com as certezas abaladas, com menos certezas, talvez sejamos mais tolerantes. Será essa a chave? Mudei por estes dias. Talvez mais tolerante, talvez ajuíze menos. Há situações e pessoas onde não é possível ajuizar. Apenas as podemos viver em pleno; apenas de acordo com os ideais do coração; e não de acordo com os que estão nos papéis, nem nas abstractas convenções sociais.
André, meu filho, não é por escrever muito que digo o que interessa. E nem sei se o consigo, escrevendo muito ou pouco. A matemática é importante e ajuda-nos; só não nos serve quando somos reféns dos algoritmos do coração e das variáveis que nos trocam as manhãs de primavera.
Não se diz o amor por palavras. Muito menos por fórmulas. Espero conseguir dizer-te o meu amor por ti, na matemática do riso e do choro. Apenas rindo e chorando, convosco e por vós, conseguirei mostrar o quanto te desejo bem, o quanto te adoro, a ti e aos teus irmãos. Que tende para mais infinito, algo que, espero, possas sentir, a par e passo com as outras matemáticas da tua vida.
Só mais uma palavra meu André: ao contrário de muitos outros recursos que escasseiam com a sua utilização, o amor é dos que aumenta, quanto mais o gastamos e quanto mais o damos. Agradeço-te, tens ajudado a aumentar o que sinto, por ti e pelos teus irmãos.
Rodrigo, meu filho, tu que sabes tudo intuitivamente, que sentes antes de nós, que percebes as coisas; que soubeste desde logo quando algo não estava bem, e perguntaste, felizmente, pleno da tua púbere maturidade, que nos facilitaste a tarefa de explicar de forma simples, o inexplicável.
Meu confidente, sem o saberes, és o barómetro, sei por teu intermédio tudo quanto de bom e de menos bom se vai passando cá por casa.
Saberás um dia que o amor dos pais, deste em particular, se faz de muitos desencontros, de desentendimentos, apenas e só da tentativa e erro. Já o escrevi para um dos teus irmãos, de todas as minhas imperfeições como pai, a que mais me ajudou, foi perceber que não sendo nem podendo ser um pai perfeito, apenas vos devo a honestidade e a partilha das emoções. Sem mais, sem jogos, nem subterfúgios.
Sei que entendes esta linguagem, a dos sentidos. A tua rosa dos ventos é a tua intuição; por isso, ontem, me perguntaste assim que falámos a sós, se estava tudo bem com o bebé. E te respondi que até onde é possível neste momento perceber, sim, mas que faltam mais exames. E não te consegui dizer que já sabia que é uma menina, a nossa menina, a Rita, não porque não tivesse todo o desejo de o dizer, mas porque isso não seria justo, sem ter mais informação e sem saber o que nos reservaria o futuro próximo. A cobardia do amor. De vos querer proteger das maldades que espreitam à esquina.
Aprendi por estes dias que, para além de ter cada vez menos certezas, e talvez por isso ter muito mais perguntas do que caminhos e do que respostas, também o amor tem muitos sentidos, muitas formas, muitos trilhos. E que, o que pensamos e damos por arrumado nas nossas vidas, como sendo eticamente mais correcto, não passa de um conjunto de convicções apenas inseridas num certo e dado contexto, que pode mudar naquele segundo e naquela falésia. As muitas verdades da verdade. A perfeição que resulta da soma de todas as nossas imperfeições.
Brincalhão como és, com todo o teu enorme sentido de humor, deixa-me partilhar outra aprendizagem: podemos e devemos brincar e divertir-nos na vida e, se possível, em todos os dias da vida. Mas nunca podemos brincar com a vida! Nem com a morte. Há decisões que são as bombas relógio que nos colocam nas mãos. E seja qual for o seu sentido, explodem sempre. E que nos custam a alma. Toda, inteirinha. E as marcas que ficam … fazendo de nós, quem sabem pessoas mais dignas, apenas porque sobrevivemos ao sofrimento, às lágrimas, à dor, à dor partilhada com os que amamos.
E é por isso que somos mais fortes. Em toda a fragilidade da nossa humana existência, apenas nos resta rir e chorar, e acreditar, e mantermo-nos fiéis a nós próprios.
O resto, são contas que se farão no final de todas as lágrimas, não interessando nada nem para nada, pensarmos em algo que não seja um passo a seguir ao outro. Só nos resta tentar ser mais dignos no segundo que se segue.
Amo-vos meus filhos. Da forma que sei e da forma que sou. Não consigo traduzir o quanto, em palavras. Espero consegui-lo na vida real, do outro lado das palavras. E sobretudo, espero que um dia entendam que as decisões dos pais são tomadas por amor, mesmo quando não existem decisões certas e quando há trilhos de dor que, sabemo-lo, perdurarão.
p.s.1 – Rita, agora que estas três semanas, uma vida, passaram e permitem alguma serenidade, espero ter-te fora da barriga da mãe, com saudinha da boa, tão depressa quanto a natureza o permita. Existem imperfeições que exploramos e desenvolvemos melhor, olhos nos olhos. E nessa altura poderei palrar-te o quanto já aprendi contigo e com os teus irmãos, e o medo de não estar à vossa altura.
Mas tudo se resolve como tempo. Dizem. Assim o desejo acreditar, já não tão convicto como há uns dias atrás. Não sei o que vai acontecer até deixares esse teu habitat, muito menos o que nos reserva o futuro. Mas acredito que vamos tentar todos os dias ser felizes. Todos juntos. E vamos conseguir!
Passo a passo, muito devagar, porque como já nos ensinaste com os teus imponentes milímetros do milagre da vida, as surpresas são para viver uma de cada vez, sejam brilhantes ou obscuras. Não faz sentido precipitarmos o futuro. Também ele tem o seu ritmo e a sua noção de felicidade.
p.s.2 – aprendi meus filhos, que quero dizer sim em vez de não. Mas igualmente, que podem existir “nãos” que signifiquem alguns “sim”, embora possam nem sempre ser bem entendidos. Cabe-nos, a cada um, viver com as nossas decisões. O melhor que conseguirmos. Porque se não há pais perfeitos, muito menos há vidas perfeitas. Vamos então procurar viver os dias, os possíveis, que forem perfeitos: os que nos permitem estar junto de vocês, e sentir-vos livres, cidadãos plenos e felizes na maioria dos instantes da vida.
Talvez exista uma idade para cada aprendizagem. Talvez a maturidade seja apenas aprender a valorizar as coisas mais banais, e a serenidade e paz dos velhos seja isso mesmo. Perguntava-me um companheiro de corrida, há uns tempos, qual seria o próximo desafio.
É o maior de todos: ser um pai digno e merecedor da maravilhosa dádiva que vida nos deu – os meus três filhos.
Talvez nada tenha assim tanta importância e o importante seja apenas olhá-los bem nos olhos e sentir que valeu a pena. E sem palavras, porque nos momentos de excepção, elas não são necessárias, tudo se conjuga e faz sentido. E todas as pequenas coisas se alinham para nos mostrar o ponto onde nos definimos. Cada um. Cada verdade.
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11 comentários:
Hummm....
O que se escreve depois disto??
Se calhar nada! Apenas vou ficar com a alegria de te (vos) ver bem!
Um grande beijo aos 5 aí de casa!!
E se Deus quiser lá no nos encontraremos no paredão a passear a Rita e o/a Miguel/Maria :-)
Carlos
Um abraço António
Ana Pereira
Um grande abraço António.
JCBrito
Nenhuma ganha, nenhuma perde, quem decide é sempre a vida, sentada na esquina de cada um dos nossos dias.
Uma escrita com sentimento, mais palavras minhas serão demais!
Tudo de bom para todos vós!
Lindo!!! Só me resta desejar boa sorte.
HN
Tenho a certeza que continuarão a ser uma família feliz.
Um grande abraço.
José Alberto
Mais um sócio do SLB?... Bonito texto!
Hoje, contigo, chorei. Não sei, António, o que torna momentos únicos da vida de cada um possíveis de serem revistos na vida de outros nomes, outras famílias, outros amigos...
Sei que entenderás o que nem preciso escrever. Vocês sabem-no.
(isto dói...)
Espero abraçar os 5, em breve...Muito em breve...
Hoje, contigo, chorei. Não sei, António, o que torna momentos únicos da vida de cada um possíveis de serem revistos na vida de outros nomes, outras famílias, outros amigos...
Sei que entenderás o que nem preciso escrever. Vocês sabem-no.
(isto dói...)
Espero abraçar os 5, em breve...Muito em breve...
Obrigado amigo!
Carlos
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