É difícil exprimir a felicidade na
descida e no trajeto final, habitualmente realizado de automóvel.
Foi o culminar de uma ideia
nascida uns meses antes, de um processo de muita aprendizagem, de um plano de
viagem com limites bem definidos, de um dia de férias antecipado e preparado
para um retiro pessoal, um dia de reflexão em movimento em cima de uma
bicicleta, um dia de aventura por entre novos cheiros, pessoas e vistas.
Dezoito horas e nove minutos
antes saía de Miraflores rumo ao sotavento Algarvio. Cais do Sodré, Cacilhas,
Setúbal, Troia, Grândola/Canal Caveira, beja, Mértola, Vila Real de Santo
António e a terra dos banhos, eram simultaneamente os destinos e os postos de
controlo e avaliação. Foram trezentos e seis quilómetros de puro espírito de
viajante, sozinho à descoberta, de lugares mas, sobretudo, dos limites e de mim
próprio.
Há precisamente um ano, também em
férias, no final de julho, havia passado uma semana dura, com um episódio de
hérnia discal, uma das duas que cá estão, bem presentes. As atividades de
férias, a canoagem com a criançada ou sozinho na ria formosa, as brincadeiras
na praia, não são o melhor seguro para manter a saúde da coluna, quando já não
está 100%.
Sem conseguir, nem querer correr (algo
que desde 2012 percebi que me fazia mal e era incapacitante para a vida
quotidiana) e tendo tomado a decisão de abandonar essa paixão da corrida (algo
de que falarei num próximo post), dado o prejuízo que me trazia, impus-me
agarrar a qualquer outra forma de movimento e de exercício.
Caminhar seria sempre a base, mas
precisava de mais. Nadar é algo esporádico por estes dias, de vez em quando vou
à piscina com um dos meus filhos, mas não tem tido a frequência que teve
noutros tempos.
Num primeiro momento e ainda em
férias em 2013, utilizei a bicicleta como forma terapêutica, pois, ao contrário
do que poderia ser expectável e do que todas as pessoas à volta me diziam e/ou
recomendavam em sentido contrário, pedalar não agravava a dor; pelo contrário,
foi-me ajudando a manter a atividade, a alongar bastante bem depois de cada passeio
e a ganhar confiança.
E continuei, sempre,
entusiasmado, como quando em criança descobri a bicicleta e a liberdade que
permitia.
Desde há três anos que tento
participar, com pouca disponibilidade,
diga-se, na dinamização de uma organização chamada “Randonneurs
Portugal” que promove eventos de “pedalar para longe”, com regras internacionalmente
definidas e cujas iniciativas são designadas de brevet randonners mondiaux, os
BRM.
Os BRM são eventos de 200, 300,
400, 600, 1000 ou 1200 quilómetros, em autonomia, onde os Randonneurs
participantes podem auxiliar-se, mas sem apoio externo.
E assim, após as três primeiras
semanas de recuperação do forte episódio que referi acima, em que não mais tive
problemas (desde essa altura nunca mais tive qualquer reincidência), continuei
a pedalar, entusiasmado e a aprender uma nova forma de movimento.
Estabilizei nas três ou quatro
sessões semanais (um dia geralmente à noite durante a semana; quando posso,
dois) e as manhãs bem cedo de sábado e domingo, como quando corria.
Desejava fazer um primeiro BRM de
200km em outubro do ano passado, mas não foi possível por coincidir com a festa
de aniversário da Rita.
Continuando sempre a pedalar
comecei o ano de 2014 com uma primeira aventura de 100 km, para ver como me
sentia. Perto de casa, entre a Expo e a boca do inferno em Cascais, fiz um
circuito nessa distância e consegui. Decidi aí fazer um BRM de 200 km em
janeiro, e depois deste, um outro em fevereiro (a seu tempo cá estarei com a descrição
destas duas aventuras).
A partir daí não tinha mais
objetivos a não ser pedalar por prazer e continuar a aprender em cima da
bicicleta, desfrutando dos passeios, sozinho ou com os meus Amigos
domingueiros. A minha GIANT, que me custou 100 contos em 1991, na altura 2
ordenados de professor de natação, e que pesa 14 kg, é um misto de BTT com
urbana e não deixava, pensava eu, margem para grandes aventuras para além dos
200km.
Mas … e o início desta aventura
rumo ao Sotavento, como qualquer outra, tem sempre um mas ou um “era uma vez”,
…, no final do primeiro BRM de 200k um Randonneur chamado Rui Rodrigues
contrariou a minha versão de que 300 km só com uma bicicleta de estrada.
Referia na altura o Rui que, “porque não …”, apenas com uns retoques, era perfeitamente
fazível.
Ficou-me na memória. E há cerca
de 3 meses decidi que tiraria um dia de férias só para mim, para vir de
bicicleta para junto da família no sotavento algarvio.
Havia que escolher o percurso de
acordo com os requisitos: fazer uma etapa única, tendo como referência o tempo
de 20 horas, o limite para concluir oficialmente um BRM 300km. Ouvidas várias
opiniões optei pelo percurso menos longo, que me foi sugerido pelo Pedro, e que
perfez 306 km desde a saída de casa até à chegada.
O dia chegou, tudo correu muito
bem, foi um processo de grande intensidade, de grande aprendizagem, de grande
felicidade e realização. Foi planeado ao pormenor (algum pormenor apenas, …),
tive bastante sorte com o tempo (vento de noroeste e o calor a dar algumas tréguas
– máxima de 34 graus entre Beja e Mértola), mas foi sobretudo o resultado de um
trabalho continuado e bem realizado de treino e preparação em qualidade, com
alguma quantidade – realizei nestas últimas semanas três treinos de 100 km, uma
com bastante desnível – a preparar a serra do parque natural da reserva do
Guadiana e Mértola; outra noturna – a preparar o final; outra no pico do calor
– para preparar Beja e Mértola. Foi essencialmente o resultado da continuidade
e da acumulação de passeios – no espaço de 1 ano já pedalei mais de 6.500 km e
essa é a principal razão para ter conseguido fazer estes 300km numa única
etapa, duas horas mais rápido do que havia planeado e com as pernas e o rabo em
boas condições.
Descreverei aqui cada uma das
etapas com os seus detalhes, delícias e pormenores.
Para já, está feito, valeu, não apenas,
ou não exclusivamente pela felicidade no final, que como qualquer momento de
felicidade, se esvai rapidamente, mas por todo o caminho, pela aventura, pelas
histórias para contar, pelas perspetivas futuras.
Um agradecimento, desde já, a
todos os que me ajudaram nesta aventura.
Para já à malta cá de casa,
porque sem qualquer receio sabiam que ia conseguir e também têm a paciência
para aturar as saídas por vezes mais longas.
Ao Pedro e à Filomena pelo bicho
que tomou conta de mim, e ao Pedro em particular pelo mentoring e ensinamentos
permanentes e pelo espírito – o espírito que interessa.
Ao Nuno e Carlos pelo incentivo e
pelos passeios de domingo. Ao Pedro BD por todo o ensinamento, partilha e afinação
da bicicleta. Ao Paulo M. pelo vaticínio de que a seguir aos 200k começaria
logo a pensar nos 300 km J.
À malta Amiga que foi desejando
boa sorte.
Aos vários Randonneurs com que me
tenho cruzado, pelo exemplo e partilha.
Naturalmente ao Rui, que sem
saber, foi uma alavanca para esta aventura.
E ao longo do dia do longo
passeio, um obrigado ao Pedro, Nuno e Luís, por toda a força, partilha e
ouvidos.
Sem comentários:
Enviar um comentário