Beja -
Mértola = 52,5 km
Total Etapa 4
= 52,5 km
Logo após a saída de Beja e com o
regimento de infantaria do lado esquerdo uma placa assinalava obras durante
perto de 10 quilómetros. O asfalto oscilava entre os buracos, o mau estado e o
piso novo, a ferver, de alcatrão recém calcado. Com cuidado seguia na berma,
que se apresentava ora em bom estado, ora esburacada. Rapidamente comecei a
ouvir um barulho estranho na bicicleta, não percebendo a princípio do que se
tratava.
Com o piso essencialmente a ajudar,
em descida, o barulho ia aumentando e não percebia se era da corrente, dos
pneus, se era algum furo lento, enfim … parei duas vezes para uma verificação
rápida e já depois da viragem para Mértola percebi o que era. O alcatrão quente
e muitas das pedrinhas soltas colaram-se aos pneus e ia fazendo um barulho
contínuo, tec, tec, tec, …, que me tinha passado ao lado antes. Nova paragem e
aí decidi, pedrinha por pedrinha, retirar todas as que estavam incrustadas na
borracha dos pneus, sobretudo do da frente.
Assim que retomei a estrada, já
sem barulho e muito mais aliviado, era tempo de dar ao pedal e aproveitar o
vento de costas que se continuava a fazer sentir. Com várias descidas, o ritmo
era compensado, face ao calor cada vez maior. Estaria talvez na hora de maior
calor e para Mértola a temperatura estimada era de mais dois graus do que em
Beja. Novamente, repito, tive uma sorte imensa, pois em vez de trinta e quatro
graus, poderiam ter sido quarente e aí talvez tivesse sido necessário o plano
B.
Era o tempo de olhar a paisagem,
agora cada vez menos monótona, com campo, montes, com o gado a inventar
pastagens verdes para certamente enganar a fome, com árvores de várias espécies.
Era o tempo da solidão e da luta contra o calor, contra a sede cada vez mais permanente.
Era o tempo de dirigir o pensamento para algumas palavras a uma árvore
solitária, quem sabe a árvore que em alguns de nós vive bem no fundo do que
somos e nunca nos abandona:
Ossuda, cinzenta,
essencialmente desprovida de verde e de vida, sou aquela a quem mais amam.
Não possuo a beleza do
tronco rugoso e forte, nem a copa resplandecente, ou sequer a solidez e a
vitalidade castanhas; não darei nunca as folhas belas ou a sombra protetora, do
quente inferno estival.
Mas, de entre todas,
fui a que resistiu, a que vos resto, aquela que vos foi fiel, no curso das
cores, texturas, estações; a que permaneceu de pé, convosco, para sempre.
Sou a testemunha,
guardiã, anciã da extensão desta imensa e inacabável solidão, do abandono que
vos legaram, campos doirados, tão despojados quanto rebeldes. Campos
alentejanos que perpetuarão a resistência, a raiz do medo e do sofrimento, a
continuidade; sou uma de vós, convosco, até ao fim.
Era esse mesmo, o tempo de em
solidão e aproveitando as descidas, gritar, tão alto quanto conseguia, sem que
ninguém ouvisse, ou existisse, ali, para ouvir; gritar o grito cá do fundo, da
motivação, da liberdade, do júbilo de poder gritar sem incomodar ou ser
incomodado, o grito da vida, da realização da felicidade por estar vivo, bem
vivo, crente numa concretização, apenas uma, um retiro de um dia, que chegaria
a bom porto, porque as concretizações devem ser vividas e desfrutadas uma a
uma, sem misturas e sem sobreposições.
Essa foi a parte do caminho em
que, sintonizando com os elementos extremos do Alentejo profundo, me permiti
deitar fora o que criava pó nas entranhas, exteriorizar o sangue e a vertigem
de sentir a harmonia com o campo, com a raiz de tudo, apenas eu, sem ninguém
por perto, sem a civilização a atrapalhar esta comunhão. Foi este o tempo que
em alguns minutos transportou uma vida e me deixou saber que chegaria ao
destino, aos destinos que escolherei, com o sentimento da plena realização e
agradecimento pelas oportunidades.
Levava perto de duzentos
quilómetros e a partir daqui entrava em território desconhecido. Aproveitei uma
bomba de gasolina a cerca de 20 ou 30 quilómetros de Mértola para uma paragem,
ingestão e líquidos, compra de um gelado, um MAGNUM delicioso com amêndoa,
compra de águas geladas e uma ida à casa de banho.
Na zona perto do balcão um
Alentejano, penso que só poderia ser Alentejano, ferrava uma sesta olímpica
sentado a uma mesa. Nem televisão, nem forasteiros que iam e vinham a pagar a
gasolina, nem estes aventureiros que paravam para comprar gelados e águas, nada
nem ninguém conseguia tombar aquele sono. De peito à mostra, barriga
proeminente, barba por faze e bochechas tão redondas quanto vermelhas, assim vi
Morfeu, creio que o próprio e não apenas os seus braços, que nos acolhem a
todos, diariamente. Bem que desconfiava que Morfeu era Alentejano. Bate tudo
certo quando passamos nos locais certos nas horas certas, tudo fica claro e não
são precisas explicações.
Revigorado, o resto do percurso
até Mértola teve umas pequenas subidas, como que a preparar para o embate na
serra, na reserva do parque natural do Guadiana.
O cuidado passava, para além da
gestão do calor, pela atenção aos carros e com a ausência de bermas na estrada.
Muito atento e vigilante, totalmente focado, ainda havia margem para ver as
casas que iam surgindo no meio de alguns montes e por entre alguma mata.
Coragem, certamente, a de quem vive ali, isolado, resistente, imune a tudo,
sujeito a tudo. Luta, decididamente, muita luta nessa errância pelos caminhos
diários da procura.
Uns quilómetros adiante da
bifurcação para Castro Verde, uma descida acentuada e eis que surge a placa a
anunciar Mértola. Eram 18h10m e tendo mantido a cadência havia feito os 52
quilómetros em duas horas e vinte e nove minutos. Mantinha uma gestão, intuitiva,
conservadora, cuidadosa, tal se mantinha o calor e a temperatura.
Ainda havia um segmento muito
difícil, as subidas da serra, até Castro Marim e esta seria uma paragem
fundamental, para reabastecer e para preparar mentalmente os 80 quilómetros
finais. Parei num café muito simpático, comi uma sandes de queijo para acomodar
o estomago com sólidos, uma coca-cola bem fresca e pus na bagagem mais uma água
adicional gelada de meio litro.
Reabastecido, após novo contacto
com os meus ouvidos ao longo da jornada, estava preparado para a parte mais
difícil da aventura. Esperavam-me a serra, 6 subidas duras, outras tantas a
ajudar à dureza, mas também as descidas. Esperava-me a noite, novamente a
solidão, agora mais perto do objetivo, mas numa zona com mais perigos e menor
visibilidade para os condutores, com mais incerteza, e praticamente sem
qualquer vestígio humano ou posto de reabastecimento. Saí de Mértola pelas
18h37m, com cerca de uma hora e trinta e oito minutos de margem face ao plano,
que previra a saída pelas 20h15m. A grande vantagem de poder gerir este avanço era
realizar a parte talvez mais perigosa ainda de dia e entrar no IC27 com folga e
já com outras condições, bermas largas e escapatórias iluminadas para paragem.
Próximo destino: Vila Real de Santo António.
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