sábado, 16 de agosto de 2014

Etapa 4: Beja - Mértola

Beja - Mértola = 52,5 km

Total Etapa 4 = 52,5 km

Logo após a saída de Beja e com o regimento de infantaria do lado esquerdo uma placa assinalava obras durante perto de 10 quilómetros. O asfalto oscilava entre os buracos, o mau estado e o piso novo, a ferver, de alcatrão recém calcado. Com cuidado seguia na berma, que se apresentava ora em bom estado, ora esburacada. Rapidamente comecei a ouvir um barulho estranho na bicicleta, não percebendo a princípio do que se tratava.

Com o piso essencialmente a ajudar, em descida, o barulho ia aumentando e não percebia se era da corrente, dos pneus, se era algum furo lento, enfim … parei duas vezes para uma verificação rápida e já depois da viragem para Mértola percebi o que era. O alcatrão quente e muitas das pedrinhas soltas colaram-se aos pneus e ia fazendo um barulho contínuo, tec, tec, tec, …, que me tinha passado ao lado antes. Nova paragem e aí decidi, pedrinha por pedrinha, retirar todas as que estavam incrustadas na borracha dos pneus, sobretudo do da frente.

Assim que retomei a estrada, já sem barulho e muito mais aliviado, era tempo de dar ao pedal e aproveitar o vento de costas que se continuava a fazer sentir. Com várias descidas, o ritmo era compensado, face ao calor cada vez maior. Estaria talvez na hora de maior calor e para Mértola a temperatura estimada era de mais dois graus do que em Beja. Novamente, repito, tive uma sorte imensa, pois em vez de trinta e quatro graus, poderiam ter sido quarente e aí talvez tivesse sido necessário o plano B.

Era o tempo de olhar a paisagem, agora cada vez menos monótona, com campo, montes, com o gado a inventar pastagens verdes para certamente enganar a fome, com árvores de várias espécies. Era o tempo da solidão e da luta contra o calor, contra a sede cada vez mais permanente. Era o tempo de dirigir o pensamento para algumas palavras a uma árvore solitária, quem sabe a árvore que em alguns de nós vive bem no fundo do que somos e nunca nos abandona:


Ossuda, cinzenta, essencialmente desprovida de verde e de vida, sou aquela a quem mais amam.
Não possuo a beleza do tronco rugoso e forte, nem a copa resplandecente, ou sequer a solidez e a vitalidade castanhas; não darei nunca as folhas belas ou a sombra protetora, do quente inferno estival.
Mas, de entre todas, fui a que resistiu, a que vos resto, aquela que vos foi fiel, no curso das cores, texturas, estações; a que permaneceu de pé, convosco, para sempre.
Sou a testemunha, guardiã, anciã da extensão desta imensa e inacabável solidão, do abandono que vos legaram, campos doirados, tão despojados quanto rebeldes. Campos alentejanos que perpetuarão a resistência, a raiz do medo e do sofrimento, a continuidade; sou uma de vós, convosco, até ao fim.


Era esse mesmo, o tempo de em solidão e aproveitando as descidas, gritar, tão alto quanto conseguia, sem que ninguém ouvisse, ou existisse, ali, para ouvir; gritar o grito cá do fundo, da motivação, da liberdade, do júbilo de poder gritar sem incomodar ou ser incomodado, o grito da vida, da realização da felicidade por estar vivo, bem vivo, crente numa concretização, apenas uma, um retiro de um dia, que chegaria a bom porto, porque as concretizações devem ser vividas e desfrutadas uma a uma, sem misturas e sem sobreposições.

Essa foi a parte do caminho em que, sintonizando com os elementos extremos do Alentejo profundo, me permiti deitar fora o que criava pó nas entranhas, exteriorizar o sangue e a vertigem de sentir a harmonia com o campo, com a raiz de tudo, apenas eu, sem ninguém por perto, sem a civilização a atrapalhar esta comunhão. Foi este o tempo que em alguns minutos transportou uma vida e me deixou saber que chegaria ao destino, aos destinos que escolherei, com o sentimento da plena realização e agradecimento pelas oportunidades.

Levava perto de duzentos quilómetros e a partir daqui entrava em território desconhecido. Aproveitei uma bomba de gasolina a cerca de 20 ou 30 quilómetros de Mértola para uma paragem, ingestão e líquidos, compra de um gelado, um MAGNUM delicioso com amêndoa, compra de águas geladas e uma ida à casa de banho.

Na zona perto do balcão um Alentejano, penso que só poderia ser Alentejano, ferrava uma sesta olímpica sentado a uma mesa. Nem televisão, nem forasteiros que iam e vinham a pagar a gasolina, nem estes aventureiros que paravam para comprar gelados e águas, nada nem ninguém conseguia tombar aquele sono. De peito à mostra, barriga proeminente, barba por faze e bochechas tão redondas quanto vermelhas, assim vi Morfeu, creio que o próprio e não apenas os seus braços, que nos acolhem a todos, diariamente. Bem que desconfiava que Morfeu era Alentejano. Bate tudo certo quando passamos nos locais certos nas horas certas, tudo fica claro e não são precisas explicações.

Revigorado, o resto do percurso até Mértola teve umas pequenas subidas, como que a preparar para o embate na serra, na reserva do parque natural do Guadiana.
O cuidado passava, para além da gestão do calor, pela atenção aos carros e com a ausência de bermas na estrada. Muito atento e vigilante, totalmente focado, ainda havia margem para ver as casas que iam surgindo no meio de alguns montes e por entre alguma mata. Coragem, certamente, a de quem vive ali, isolado, resistente, imune a tudo, sujeito a tudo. Luta, decididamente, muita luta nessa errância pelos caminhos diários da procura.

Uns quilómetros adiante da bifurcação para Castro Verde, uma descida acentuada e eis que surge a placa a anunciar Mértola. Eram 18h10m e tendo mantido a cadência havia feito os 52 quilómetros em duas horas e vinte e nove minutos. Mantinha uma gestão, intuitiva, conservadora, cuidadosa, tal se mantinha o calor e a temperatura.

Ainda havia um segmento muito difícil, as subidas da serra, até Castro Marim e esta seria uma paragem fundamental, para reabastecer e para preparar mentalmente os 80 quilómetros finais. Parei num café muito simpático, comi uma sandes de queijo para acomodar o estomago com sólidos, uma coca-cola bem fresca e pus na bagagem mais uma água adicional gelada de meio litro.


Reabastecido, após novo contacto com os meus ouvidos ao longo da jornada, estava preparado para a parte mais difícil da aventura. Esperavam-me a serra, 6 subidas duras, outras tantas a ajudar à dureza, mas também as descidas. Esperava-me a noite, novamente a solidão, agora mais perto do objetivo, mas numa zona com mais perigos e menor visibilidade para os condutores, com mais incerteza, e praticamente sem qualquer vestígio humano ou posto de reabastecimento. Saí de Mértola pelas 18h37m, com cerca de uma hora e trinta e oito minutos de margem face ao plano, que previra a saída pelas 20h15m. A grande vantagem de poder gerir este avanço era realizar a parte talvez mais perigosa ainda de dia e entrar no IC27 com folga e já com outras condições, bermas largas e escapatórias iluminadas para paragem. Próximo destino: Vila Real de Santo António.

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